Manhã fria, inverno pegando e seu Zé sentado, recurvado sobre a bengalinha improvisada por um cabo de vassoura. Mãos encostadas na boca. Ali é o lugar onde sua vida mais passa: o banco do alpendre de sua humilde casa de taipa. Era o palco onde cantava suas toadas apaixonadas e lembrava dos tempos de vaqueiro.
Queria prosear, mas com quem? “Sou só
um velho chato”, pensava. A memória trazia os grandes compadres que conseguiu. Se
algum aparecesse para conversar que emoção! É certo, porém, que
com mais da metade deles o encontro só se sucederia na outra Vida, na outra Morte,
ou no Purgatório. E os que ainda viviam se encontravam apenas em suas camas, sem lembranças, sós.
O gato
acompanhava Seu Zé, preguiçoso, ronronando no colo. Era da filha, mas gostava
mesmo era dele. É provável que por causa do pigarro que parecia (e
era realmente) uma retribuição amorosa do “róm, róm” felino.
—Vem gente, olhe. Traga um cafezinho pra esquentar, Joana.
—Tô ocupada, pai! — responde nervosa, de dentro da casa.
O visitante. Rapaz alto, barbudo, estava arrumado, de pouca conversa. Chegou, cumprimentou, pediu a benção.
—O senhor tá bom? —pergunta o moço.
O velhinho permaneceu na sua postura toda torta,
olhando para o chão. Fechou os olhos e começou a mergulhar na sua história.
—Ô home, sou surdo. Vejo, mas as falas fico sem
escutar. Sente aqui e converse mais eu. Minha filha é uma senhorita
atarefada. Cuida de mim, mas conversar não pode. Só ela me dá importância, a coitada. Nem
farreia, nem namora, só estuda e cuida das coisinhas e de mim. Disse que não
casa enquanto eu viver. Só ela, meu moço.
O homem
sentou no canto do banco bem pertinho da porta, olhando disfarçadamente para dentro.
Zé espantou o gato e colocou a chapéu no lugar do bichano.
Finalmente havia companhia. Tinha de aproveitar.
—Tenho 96, graças a Deus. Nunca pensei que ia viver tanto. Oito filhos eu tive. Dois tão no Céu e o resto nem sei por onde anda, se esqueceram
do pai. Só essa que mora comigo que lembra. Minha mulher também morreu —
abaixou a cabeça topando as mãos por uns segundos, por falta de fôlego talvez, também por tristeza lembrando-se de sua Zéfa.
Espera uma fala do visitante. Não vem. Continua:
—De vez em quando passa gente nessa estrada aí da frente e eu chamo: “sente aqui pelo amor a seus
pais” e nada de virem. Isso que me mata. Você num sabe de nada. Vejo que
os pais de você te educaram bem. Falta muito hoje gente assim. Ninguém pede benção,
ninguém respeita os de idade. A gente envelhece e se vê nada, só um mulambinho
que os outros botam prum lado e pro outro. Difícil eu me distrair como agora.
Difícil. Agora tô com a memória curta esqueço quando foi a última vez.
Fez
mais uma longa pausa para respirar.
—Moço tô é muito feliz, você é gente muito boa! Vou contar um segredo.
Mexia as mãos aflito uma sobre a outra, soprou forte e teve
coragem. Quase sussurrou as palavras segredadas, com medo da filha ouvir, e também por vergonha.
—Eu soube duma velha viúva que mora ali perto, pela
boca dum que tava passando perto, falando alto com um outro. Tem minha
idade quase, parece.Vou pedir pra minha filha pra me levar até ela. Num quero viver só —
riu até pigarrear. Acho que rejeitar um velho como eu ela isso ela não vai fazer.
O velho virou com uma risadinha sua cabeça
para o lado. Queria saber a opinião do visitante, meio envergonhado. Queria muito
a opinião. Levantou a cabeça para ver o rosto dele.
Ficou sem o ver. Tinha saído há muito tempo, durante suas primeiras palavras, sem que visse. Estava só.
Angustiou-se, passou a mão no rosto. Botou o
chapéu na cabeça de novo. Levantou-se. Saiu para almoçar. Mesa arrumada... Chamou sua filha, mas não respondeu. Nunca mais.
Foi a ultima vez que almoçou bem, pois só sabia o pobre senhor fazer o feijão e a carne.
A filha naquela manhã fugiu com o visitante que não ouviu a ele. Foi morar com o Roberto numa cidade longe e teve dez filhos.
— Venha, meu Xandinho. Bichano, chegue.
Todavia, o gato também partiu. Joana levou num saco ao lado de suas mochilas.
Estava só de novo, e mais do que nunca. Sem com quem partilhar seus sustos e lágrimas.
A filha naquela manhã fugiu com o visitante que não ouviu a ele. Foi morar com o Roberto numa cidade longe e teve dez filhos.
— Venha, meu Xandinho. Bichano, chegue.
Todavia, o gato também partiu. Joana levou num saco ao lado de suas mochilas.
Estava só de novo, e mais do que nunca. Sem com quem partilhar seus sustos e lágrimas.
FONTE DA IMAGEM: http://el-pendragon.blogspot.com.br