sábado, 23 de junho de 2012

Companhia

                

   


   Manhã fria, inverno pegando e seu Zé sentado, recurvado sobre a bengalinha improvisada por um cabo de vassoura. Mãos encostadas na boca. Ali é o lugar onde sua vida mais passa: o banco do alpendre de sua humilde casa de taipa. Era o palco onde cantava suas toadas apaixonadas e lembrava dos tempos de vaqueiro.
   Queria prosear, mas com quem? “Sou só um velho chato”, pensava. A memória trazia os grandes compadres que conseguiu. Se algum aparecesse para conversar que emoção! É certo, porém, que com mais da metade deles o encontro só se sucederia na outra Vida, na outra Morte, ou no Purgatório. E os que ainda viviam se encontravam apenas em suas camas, sem lembranças, sós.
    O gato acompanhava Seu Zé, preguiçoso, ronronando no colo. Era da filha, mas gostava mesmo era dele. É provável que por causa do pigarro que parecia (e era realmente) uma retribuição amorosa do “róm, róm” felino.
   —Vem gente, olhe. Traga um cafezinho pra esquentar, Joana.
   —Tô ocupada, pai! responde nervosa, de dentro da casa.
    O visitante. Rapaz alto, barbudo, estava arrumado, de pouca conversa. Chegou, cumprimentou, pediu a benção.     
   —O senhor tá bom? —pergunta o moço.
   O velhinho permaneceu na sua postura toda torta, olhando para o chão. Fechou os olhos e começou  a mergulhar na sua história.
   —Ô home, sou surdo. Vejo, mas as falas fico sem escutar. Sente aqui e converse mais eu. Minha filha é uma senhorita atarefada. Cuida de mim, mas conversar não pode. Só ela me dá importância, a coitada. Nem farreia, nem namora, só estuda e cuida das coisinhas e de mim. Disse que não casa enquanto eu viver. Só ela, meu moço. 
  O homem sentou no canto do banco bem pertinho da porta, olhando disfarçadamente para dentro.
  Zé espantou o gato e colocou a chapéu no lugar do bichano. Finalmente havia companhia. Tinha de aproveitar.
   —Tenho 96, graças a Deus. Nunca pensei que ia viver tanto. Oito filhos eu tive. Dois tão no Céu e o resto nem sei por onde anda, se esqueceram do pai. Só essa que mora comigo que lembra. Minha mulher também morreu — abaixou a cabeça topando as mãos por uns segundos, por falta de fôlego talvez, também por tristeza lembrando-se de sua Zéfa.
   Espera uma fala do visitante. Não vem. Continua:                                                                  
   —De vez em quando passa gente nessa estrada aí da frente e eu chamo: “sente aqui pelo amor a seus pais” e nada de virem. Isso que me mata. Você num sabe de nada. Vejo que os pais de você te educaram bem. Falta muito hoje gente assim. Ninguém pede benção, ninguém respeita os de idade. A gente envelhece e se vê nada, só um mulambinho que os outros botam prum lado e pro outro. Difícil eu me distrair como agora. Difícil. Agora tô com a memória curta esqueço quando foi a última vez.
  Fez mais uma longa pausa para respirar.
  —Moço tô é muito feliz, você é gente muito boa! Vou contar um segredo.
  Mexia as mãos aflito uma sobre a outra, soprou forte e teve coragem. Quase sussurrou as palavras segredadas, com medo da filha ouvir, e também por vergonha.
  —Eu soube duma velha viúva que mora ali perto, pela boca dum que tava passando perto, falando alto com um outro. Tem minha idade quase, parece.Vou pedir pra minha filha pra me levar até ela. Num quero viver só — riu até pigarrear. Acho que rejeitar um velho como eu ela isso ela não vai fazer.
   O velho virou com uma risadinha sua cabeça para o lado. Queria saber a opinião do visitante, meio envergonhado. Queria muito a opinião. Levantou a cabeça para ver o rosto dele. Ficou sem o ver. Tinha saído há muito tempo, durante suas primeiras palavras, sem que visse. Estava só.
   Angustiou-se, passou a mão no rosto. Botou o chapéu na cabeça de novo. Levantou-se. Saiu para almoçar. Mesa arrumada... Chamou sua filha, mas não respondeu. Nunca mais.
 Foi a ultima vez que almoçou bem, pois só sabia o pobre senhor fazer o feijão e a carne.   
 A filha naquela manhã fugiu com o visitante que não ouviu a ele. Foi morar com o Roberto numa cidade longe e teve dez filhos.
   — Venha, meu Xandinho. Bichano, chegue.
   Todavia, o gato também partiu. Joana levou num saco ao lado de suas mochilas.
   Estava só de novo, e mais do que nunca. Sem com quem partilhar seus sustos e lágrimas.




FONTE DA IMAGEM: http://el-pendragon.blogspot.com.br

domingo, 17 de junho de 2012

Meu grande cálice

                                       
                   
   
    Pouco antes do meio-dia numa segunda-feira. Dr. Anderson Anchieta, advogado e pai de família esperava relaxar um pouco na sua ida inusitada à Praça Das Mangueiras para comprar cachorro-quente. Não que fosse prazer seu ir comprar tais coisas. Era pelo contrário desonroso, uma forma de se afastar de seu mundo que o chateava.
   —3 reais, senhor. Vai desejar mais alguma coisa? Suquinho pra descer rápido? oferecia o senhorzinho gordo de bigode quadrado do outro lado do balcão na lanchonete movimentada.
   — É só —. E deu o dinheiro sem pegar o troco, saindo em busca dum lugar mais calmo.
   Tinha fome e queria comer logo. Enquanto andava, fitou o cachorro-quente em suas mãos e o levou logo para a boca. Parou, mastigou-o mais um pouco e cuspiu tudo com um nojo terrível. Ainda bem que já estava longe das vistas e dos ouvidos do vendedor.        
   Em quinze passos ao lado chega a um banco sob a sombra duma das muitas mangueiras por ali. Senta-se, para descansar as pernas cambaleantes.
   De inicio pareciam haver pregos fincados no assento, pelo jeito que dr. Anderson mexia-se, pois se costume era usar poltronas macias, e até delas reclamava com muita frequência.
   “Aquela lanchonete merece ser fechada!”, pronunciava baixinho para si ao olhar o cachorro-quente jogado logo em frente, a 20 passos de distância. Ao pensar no gosto o comparou com a sua vida. Percebeu que ele era a metáfora exata dela. “Tão amargo, ruim e porco quanto, mesmo que chame interesses pela aparência!”
   Então seu celular toca, ou como prefere chamar, “o maldito aparelho está fazendo barulho”. Miguel, o filho, ligava para saber se o pai o iria levar ao aniversário de onze anos do colega de sala Felipe.
   — Eu tenho coisas mais importantes, filho. Agora mesmo estou bastante ocupado. Tenho que desligar. Pra isso eu deveria sair às cinco do trabalho. Não vou sair mais cedo e perder de atender clientes por causa da festinha desse tal colega.
   A mulher e o filho: pragas em sua vida. Graças a este perdera o bons sentimentos por aquela. Alegava terem secado todos nos chorinhos de Miguel nas madrugadas até os seus 2 anos de idade, nas "birras infernais" para passearem mais tempo juntos que ainda persistentes, etc. Tudo o fez mudar para a mulher; e para pior. A pobre Andressa vinha sofrendo amargamente, engolia calada todo o fel numa paciência quase que santa para o bem do filho, da família e do seu coração que por ele continuava pulsando. E ele, a todo o suportar dela, vinha respondia com prostitutas da cidade vizinha.
   Anderson inclinou levemente para o solo sua cabeça pensando e olhando os pés dos transeuntes moribundos ou não que passavam em sua frente e que possivelmente iam às suas casas apressados para o almoço. Lamentava a má vida que aqueles “pobres infelizes” deveriam ter.      
   Entristecia-se, pensando que a vida deles era duma desgraça sem tamanho, incomparável ao cachorro-quente nojento. "Como ainda persistem na vida?" Eram pés que por suas deduções deviam “diariamente pisar o pão que o Diabo escarrou”. Sem os seus desfrutes duma adolescência tão saudosa e prazerosa: farreando nas noites e madrugadas, a gastar muito o dinheiro do pai que também era advogado, andando de motocicleta pelas ruas até tarde com seus amigos, e durante dia dormindo para repor as energias. Chegava a rir se perguntando como chegara a se tornar um bom advogado... Que saudades! Sem mulher, sem filho, sem trabalho... Sem responsabilidade, protegido pelas asas dos pais. Bem diferente do “Cálice de Dor” que sentia.             
   “É que nem esse cachorro-quente: intragável”, continuava ele. E ficou ali, por mais quinze minutos sentado, olhando pés e se lastimando. Lembrou-se do café um pouco sem açúcar de manhã, da sua necessidade de acordar às oito e meia da matina para trabalhar, do seu cachorro que tinha defecado na sala deixando tudo fedorento dentro de casa logo cedo, da porta que enganchou ao tentar abrir, do computador que estava lento, da fala enjoada dum cliente, do calo que tinha no pé, do calor infernal daquele dia... E do outro lado via comprazido o seu passado: as carícias confortantes de sua mãe quando ele chegava da escola enraivado por causa  professora que tinha o exigido calar-se, da sua vidinha ociosa de bebedeira... Tudo há muito passou todavia ele sentia seus ecos no coração.
  “Eu não mereço esse cálice em que vivo, é demais para mim e pra qualquer um!”, falava baixinho. Era como o cachorro-quente. Era intragável.
    De cabeça levantada respirou fundo. O estômago roncava e precisava fazer o seu almoço. Avistou a uns quarenta metros a sua frente uma velhinha magra, de lenço na cabeça, vestida em andrajos estampados de bolinhas, que seguia em sua direção com um cachorro que era coro osso e fome. Ela andava apressadinha, de pé bem firme e olhar fixo não se sabia em que, mas parecia ser no próprio Anderson. “Deve estar querendo me roubar àquela ladra. Ah, não tenho medo duma criatura tão fraca e miserável”, pensou sem se mover.
  Ela se aproximava olhando pro chão e para frente, levantando e abaixando a cabeça com medo de tropeçar em algo e estabacar-se; já estava atravessando o meio da rua, bem atenta aos carros e ao alvo de sua perseguição. Seu rosto parecia uma máscara mal colocada e pendente, suas pelancas balançavam enquanto batiam ligeirinhos os pés descalços no chão. A boca estava meio aberta e ela parecia estar arfando. Tinha os olhos meio arregalados, bem vivos.
   Era só o cachorro-quente no chão o desejo dela, aquilo para qual olhava tão fixamente. Parou, se agachou com a mão esquerda nas costas fazendo uma careta, pegou-o, tirou o excesso de sujeira com as mãos quase tão sujas quanto o chão e deu mordidas rápidas e agoniadas, como se fossem a última coisa que pudesse fazer em sua vida, sem esquecer-se de dividir um pequeno pedaço com o cachorro que de imensa felicidade abanava o rabinho. Terminada a refeição, ela sorriu e saiu com o companheiro feliz da vida como se fosse tudo a coisa mais natural do mundo. 
  —Mas que!... ela... o... Como? Será que?...
  Ficou sem palavras. Saiu em direção à lanchonete de novo, comprou outro cachorro-quente. E saiu deliciando-se com aquele SEU lanche.






Fonte da imagem usada: jorgemiguelcs.wordpress.com